1. Quais são hoje os principais desafios na formação de hábitos alimentares saudáveis na infância?
C.A.: A alimentação foi, é e sempre será a tônica para a humanidade, em todos os tempos. A nutrição adequada deve ser iniciada desde a preconcepção e gestação, passando pela infância e seguindo por toda a vida. Entretanto, os últimos estudos têm demonstrado grande destaque nos primeiros cinco anos de vida.
Esse período é considerado crucial, e a nutrição é um dos elementos que traz impactos no curto, médio e longo prazo, pois é um dos fatores ambientais controláveis e modificáveis, relacionados ao crescimento físico, à maturação neurológica, à formação da microbiota intestinal, ao desenvolvimento comportamental, sensorial, cognitivo e de linguagem, assim como às relações socioafetivas.
K.S.: Entendo que um dos maiores desafios para nós, profissionais nutricionistas, quando falamos da contribuição para a formação de bons hábitos alimentares na infância, é a tarefa de interpretar a ciência da nutrição, mantendo-nos atualizadas nas diretrizes baseadas em estudos robustos e adaptados à nossa população, mas ao mesmo tempo viabilizar a transferência desse conhecimento aos pais ou responsáveis pelos cuidados da criança, seja em casa ou na escola, respeitando a experiência de cada um deles.
Resumindo, é atuar de forma o mais individualizada possível, cientes da importância do nosso papel quando extrapolamos essas ações para o campo da saúde pública.
C.A.: Tanto na prática clínica quanto na literatura, notamos uma crescente exposição das crianças a alimentos industrializados não adequados à sua faixa etária, à alta densidade energética das dietas contemporâneas e à baixa diversidade alimentar. Isso aumenta a chance de consumo insuficiente de:
Ao mesmo tempo, observamos a diminuição do tempo destinado às refeições em família e o consumo precoce de açúcares, o que pode dificultar a consolidação de práticas saudáveis desde os primeiros anos de vida.
K.S.: Esse é o desafio. Sob os aspectos de evolução daquilo que é cientificamente demonstrado e preconizado em orientações oficiais, estamos muito bem munidos. Contudo, na prática cotidiana, há muitos fatores interferentes que precisam ser considerados.
C.A.: Tal cenário traz luz a uma realidade não apenas do Brasil, mas mundial: a dupla carga de má nutrição — definida como a manifestação simultânea de deficiências de micronutrientes, baixo peso e baixa estatura, além do excesso de peso.
Esses são os principais achados do Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (ENANI-2019), um inquérito populacional domiciliar com crianças menores de 5 anos, que demonstrou que, embora a situação nutricional da infância no país tenha melhorado, muitas crianças ainda não possuem alimentação e nutrição adequadas.
2. Como o estilo de vida das famílias e as crenças sobre nutrição impactam a alimentação na infância?
K.S.: Fazendo um elo com a questão anterior, o estilo de vida é um dos fatores interferentes na formação de hábitos alimentares, seja de forma positiva ou negativa.
C.A.: O estilo de vida das famílias — incluindo o ritmo de trabalho, a rotina doméstica e o tempo disponível para o preparo das refeições — influencia diretamente a qualidade e a variedade dos alimentos ofertados.
K.S.: Considerando que estilo de vida pode ser definido como um conjunto de comportamentos, costumes e práticas moldadas por fatores ambientais, culturais, educacionais e socioeconômicos, podemos citar vários exemplos de como isso impacta as escolhas alimentares.
O nível socioeconômico, por exemplo, afeta diretamente o acesso a bens e serviços — incluindo alimentação, moradia, transporte e saúde — e interfere nos padrões de consumo e lazer.
Isso significa que muitas orientações médicas e nutricionais, embora ideais, nem sempre são aplicáveis da mesma forma a todas as famílias, devendo ser adaptadas conforme o contexto.
C.A.: Além disso, crenças culturais e percepções sobre o que é “saudável” ou “adequado” determinam preferências e atitudes diante dos alimentos. Famílias que valorizam a conveniência tendem a adotar padrões alimentares menos equilibrados, enquanto aquelas que envolvem as crianças no preparo das refeições e nas decisões alimentares promovem maior autonomia e aceitação de novos alimentos.
K.S.: Orientações nutricionalmente corretas, como manter uma alimentação variada com frutas, legumes, grãos integrais e proteínas, podem não ser viáveis em muitas famílias. Da mesma forma, incluir carnes e vísceras para fornecer ferro e vitamina A é uma recomendação adequada, mas que exige maior custo.
Há também famílias que optam por não consumir proteínas de origem animal, o que demanda ajustes nas orientações nutricionais.
C.A.: As primeiras evidências de que o comportamento dos pais à mesa influencia o peso e a dieta das crianças surgiram em estudos clínicos sobre seletividade alimentar. As práticas parentais refletem o clima emocional das refeições e afetam o comportamento alimentar infantil.
O “controle coercivo” — pressão, punição ou recompensas para comer — costuma gerar recusa e resistência. Já o estilo permissivo, sem limites, pode levar ao consumo excessivo e dietas pobres em nutrientes.
É essencial que os cuidadores, com apoio dos profissionais de saúde, orientem a alimentação de forma positiva. Isso inclui dividir responsabilidades, estimular o diálogo e o exemplo, e respeitar os sinais de fome e saciedade.
Quando bem conduzidas, essas atitudes favorecem o consumo de frutas, legumes e laticínios, além de reduzir riscos de carências e excesso de peso.
3. A formação de hábitos alimentares saudáveis na infância depende da sintonia entre orientação, prática e vivência. Que atitudes dos adultos responsáveis mais impactam essa relação?
K.S.: Utilizando uma frase presente em material da própria ABIAD — “Todo bebê e criança no mundo deve ter um início de vida seguro e adequado” —, é impossível não abordar a responsabilidade de pais e profissionais de saúde desde o início da gestação, com ações educativas e orientações já no pré-natal, incluindo o aleitamento materno.
O conhecimento dos pais sobre o aleitamento abre uma janela de oportunidades para formar hábitos alimentares saudáveis desde o início da vida. A Organização Mundial da Saúde recomenda amamentação exclusiva até os seis meses e mantida até os dois anos ou mais, com introdução gradual de alimentos complementares adequados.
Essa fase exige sintonia entre pais, cuidadores e escolas, pois a primeira infância é crucial para o desenvolvimento e o bem-estar social das crianças. Ações bem alinhadas geram benefícios duradouros.
C.A.: A construção de uma relação saudável com a alimentação depende do exemplo e da coerência dos adultos. Compartilhar refeições em família, evitar o uso de alimentos como recompensa ou punição e respeitar sinais de fome e saciedade são atitudes determinantes.
A exposição repetida e positiva a alimentos saudáveis — em um ambiente tranquilo e afetuoso — reforça o vínculo prazeroso com o ato de comer. Comer é um comportamento aprendido, e a aceitação alimentar depende de múltiplas exposições (entre 8 e 15 vezes) ao mesmo alimento.
4. Como estudos podem auxiliar na elaboração de estratégias e ações de melhoria do estado nutricional e redução de riscos de doenças?
K.S.: Quando o tema é saúde pública, não há como planejar políticas eficazes sem dados populacionais. Estudos bem desenhados permitem compreender padrões de alimentação, identificar fatores de risco e orientar decisões baseadas em evidências.
C.A.: A geração e publicação de dados têm impacto direto nas políticas públicas, especialmente na garantia de direitos e no desenvolvimento de programas voltados à primeira infância, campanhas de comunicação e políticas regulatórias.
K.S.: É essencial manter o rigor científico para evitar interpretações equivocadas que comprometam a validade dos resultados e a eficácia das ações.
Um exemplo é o ENANI (Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil), apoiado pelo Ministério da Saúde. A pesquisa avalia o estado nutricional e as deficiências de micronutrientes em crianças de 6 a 59 meses, abordando aleitamento materno, consumo alimentar e carências nutricionais.
A primeira edição, de 2019, mostrou avanços no aleitamento materno, mas também práticas inadequadas na introdução alimentar. A segunda edição, em andamento, já oferece subsídios para ajustes em políticas de suplementação e prevenção de deficiências.
C.A.: Esses dados abrem um novo horizonte para o uso de soluções nutricionais complementares, capazes de prevenir deficiências de nutrientes essenciais e seus impactos na saúde a curto e longo prazo.
5. Quais tendências vocês vislumbram para o futuro da alimentação na infância?
K.S.: Apesar da evolução do conhecimento científico, ainda há desafios para integrar profissionais de saúde, formuladores de políticas, indústria, educação, agricultura e comunicação. A sincronia entre esses atores é essencial.
C.A.: Nota-se uma tendência crescente de convergência entre nutrição, sustentabilidade e tecnologia. A alimentação infantil caminha para ser mais personalizada, com foco na microbiota intestinal, na nutrigenômica e na qualidade de novos ingredientes.
Vivemos uma revolução silenciosa impulsionada pela tecnologia. A inteligência artificial e os bancos de dados integrados já permitem estruturar protótipos de produtos e estratégias de cuidado mais individualizadas.
O futuro da nutrição infantil vai além de incentivar hábitos saudáveis: prepara a sociedade para um novo paradigma de saúde, em que longevidade, sustentabilidade e tecnologia caminham juntas. Mais do que nunca, cuidar de si é cuidar do futuro.