Em entrevista exclusiva para esta edição especial do Panorama ABIAD, a atual Assessora-Chefe de Melhoria da Qualidade Regulatória da Anvisa, Thalita Antony de Souza Lima, comenta sobre o processo de Análise do Impacto Regulatório (AIR) de rotulagem nutricional, sua importância, desafios e conquistas. Na ocasião, Thalita era a Gerente-Geral de Alimentos e esteve à frente desse processo praticamente do começo ao fim.
PANORAMA – A partir de qual momento você começou a se envolver nessa AIR (Análise do Impacto Regulatório)?
THALITA – Praticamente desde o início. As discussões começaram com um grupo de trabalho de 2014 a 2016 para discutir algumas questões que envolviam o modelo de rotulagem nutricional da RDC 360/2003. Acompanhei a última reunião do grupo, que ocorreu em maio de 2016, quando já estava à frente da GGALI. O processo ficou suspenso em razão de outras prioridades e foi retomado em 2017, quando foi publicada a iniciativa regulatória formalizando o início da discussão.
PANORAMA – Resumidamente, como foi o processo de AIR no caso de rotulagem nutricional?
THALITA – Foi um processo pioneiro da Anvisa. A Agência já vinha implementando AIR desde 2008, mas a ferramenta ainda não era obrigatória, nem na Anvisa nem no Governo Federal, e fazia-se de uma forma mais simples. Então, a rotulagem nutricional adotou o método, de forma inovadora, já nos moldes como hoje é cobrado pelos diversos dispositivos legais que passaram a vigorar em abril de 2021, quando a AIR em questão já tinha sido concluída.
Esse processo é um exemplo de boas práticas regulatórias dentro da Anvisa, desde o modo como foi conduzido, passando pela participação social, transparência, e por termos conseguido chegar a um processo legítimo e reconhecido pelos agentes envolvidos. Ele é utilizado como case de sucesso por outros órgãos, como o Ministério da Economia, e chegou a ser apresentado em reuniões da OCDE.
PANORAMA – Qual era o cenário no início dos trabalhos?
THALITA – O ambiente era muito complexo, porque não havia um alinhamento do que se queria resolver, qual o problema e qual o objetivo do processo. Alguns agentes da sociedade tinham uma expectativa de que a rotulagem nutricional resolveria, por exemplo, os problemas de obesidade, de doenças cardiovasculares e doenças crônicas não transmissíveis na população brasileira.
Por outro lado, como Anvisa, procurávamos esclarecer que a rotulagem faz parte de um rol de políticas de saúde pública. Ela pode ter sua contribuição na redução dessas doenças, mas não tem a capacidade de resolver tudo. Até conseguirmos alinhar esse entendimento, tivemos encontros muito tensos com os diferentes agentes externos. Só conseguimos alinhar e deixar isso claro para a sociedade quando decidimos conduzir o processo no formato de AIR.
A ideia surgiu de uma conversa com a antiga gestora da área em que estou à frente hoje, a Gerência-Geral de Regulamentação e Boas Práticas Regulatórias. Nessa conversa, surgiu a ideia de fazer um piloto do AIR na Anvisa.
Fizemos uma reflexão sobre as etapas já realizadas, por exemplo, de que o grupo de trabalho já havia levantado evidências para a discussão de problemas da norma vigente, que é a etapa inicial da AIR. Então aplicamos o método da AIR para definir que o problema a ser solucionado era a dificuldade de compreensão das informações nutricionais pelo consumidor. Isso porque as informações apresentadas eram muito técnicas, ou não tinham visibilidade adequada, com letras pequenas, cores muito claras, ou o consumidor não tinha conhecimento, educação nutricional para compreendê-las.
Esse foi um dos pontos mais importantes do alinhamento com os grupos que acompanhavam o processo, o de que não compete à Anvisa decidir pelo consumidor, pois o alimento está inserido em um contexto de saúde, mas há um contexto social. Assim, o modelo deveria informar, e não alertar. As pessoas precisam saber que aquele alimento tem alguns ingredientes que podem fazer mal à saúde se forem consumidos em excesso. Isso nos trouxe luz para decidirmos os caminhos, as alternativas regulatórias do processo.
PANORAMA – A partir dessa definição, como foi o desdobramento dos trabalhos?
THALITA – Fomos estudar o assunto e vimos uma falta de harmonização internacional, que era outro ponto que trazia complexidade ao processo. Havia ações pulverizadas em alguns países e regiões, mas nada uniforme.
Então, foi importante trazer o olhar para o consumidor brasileiro. Fomentamos estudos com a população do Brasil, considerando a realidade de seu público consumidor e o cenário do nosso país. Qual a melhor forma de levarmos a informação aos consumidores?
Testamos modelos já existentes no mundo. Havia um modelo em consulta pública no Canadá no formato de lupa e o utilizamos como inspiração para testar na pesquisa, pois era um modelo mais informativo, sem ter o formato de alerta usado em outros lugares, e que conflitava com o objetivo regulatório.
Conseguimos chegar à conclusão, considerando as evidências e o perfil da nossa população, de que o melhor modelo no Brasil seria aquele que destacasse os altos conteúdos de nutrientes críticos. Essa foi a primeira decisão.
Em seguida, partimos para definir o “alto conteúdo” e “em que?”. Definimos: açúcares adicionados, gorduras saturadas e sódio, pois são os principais nutrientes relacionados à ocorrência das doenças crônicas não transmissíveis. Novamente, essa escolha dos nutrientes foi baseada nas melhores evidências disponíveis e que foram muito estudadas pela equipe.
Feito isso, vimos se o consumidor brasileiro era capaz de entender essa informação nutricional a partir dos modelos em teste e se essa informação poderia ser capaz de ajudar o consumidor em suas escolhas. Vimos que o modelo da lupa era informativo e cumpria esse papel.
Uma das premissas de um bom processo regulatório é ser baseado em evidências, então, com toda tranquilidade, digo que essa AIR seguiu fortemente essa diretriz, além de ser um processo muito participativo e baseado nas evidências disponíveis. A cada etapa discutíamos com a sociedade, com os agentes externos. Fizemos muitos diálogos nesse processo.
PANORAMA – Você chama de participação social e eu enxergo inclusive como um modelo bastante democrático. Quando olho alguns números, fico impressionado. Por exemplo, em 2018 houve mais de 33 mil contribuições de 3,5 mil participantes e, quando da apresentação da proposta do instrumento regulatório, vocês receberam outras 82 mil contribuições de 23 mil participantes. O quanto essa participação impactou o trabalho da Anvisa?
THALITA – O modelo transparente e participativo com que conduzimos o processo não trouxe a agilidade que talvez alguns grupos esperassem. A ampla participação social é importante e necessária, mas impacta no tempo de conclusão da ação. O procedimento foi iniciado formalmente em dezembro de 2017 e concluído quase três anos depois. Mas, não vejo outro caminho, eu faria tudo de novo, todas as conversas, todas as etapas de participação social, pela complexidade e polarização de opiniões. Quando temos uma atividade dessa natureza, precisamos de muito diálogo.
Além dessas fases que você citou, ainda fizemos reuniões específicas por temas técnicos, os diálogos setoriais, abrindo tempo para contribuições. Quando chegamos a essas fases finais, achávamos que já estava quase tudo alinhado e, mesmo assim, vieram mais de 80 mil contribuições. Não houve nenhum tipo de judicialização em relação à discordância do que foi feito, o que me dá muita tranquilidade, apenas quanto ao prazo para envio de contribuições, pois alguns grupos entendiam ser necessário mais tempo.
A missão da Anvisa é proteger a saúde da população, mas não temos que fazer isso nem a mais e nem a menos, não podemos errar essa régua. Temos que fazer no limite, pois é importante promover o desenvolvimento social e econômico. Só vamos acertar dialogando e ouvindo todos que estão sendo impactados.
PANORAMA – Quais os pontos de destaque desse trabalho?
THALITA – Foi um processo baseado em evidências, com ampla participação social e transparência.
PANORAMA – O resultado atendeu às expectativas iniciais?
THALITA – Sem dúvida. Olho para trás com orgulho e com tranquilidade sobre o caminho que percorremos.
PANORAMA – Vemos uma clara mudança na regulação da tabela nutricional e alegações nutricionais em alimentos no Brasil, iniciando antes mesmo da existência da Anvisa. Você consegue enxergar qual será o próximo passo nesse sentido?
THALITA – Demoramos muito para fazer uma revisão da RDC 360 de 2003, que entrou em vigor em 2006 e foi revisada somente em 2020. Temos hoje como recomendação de boas práticas regulatórias, seja pelo Governo Federal, seja pela própria OCDE, a ideia de que o processo regulatório é um ciclo, e o tempo inteiro é preciso olhar para a regulação. Agora teremos que olhar se conseguimos atingir os objetivos e se resolvemos ou, pelos menos, minimizamos o problema regulatório que foi mapeado e os impactos gerados. É a Avaliação de Resultado Regulatório.
A intenção é que esse ciclo regulatório contínuo se torne uma prática. Antes mesmo de entrar em vigor a nova regra de rotulagem nutricional, essa etapa ex post tem sido pensada pelos diferentes agentes envolvidos e pela própria Gerência-Geral de Alimentos, isto é, monitorar a norma e saber se a medida foi bem-sucedida. Como avaliar se há algum ponto que seja preciso melhorar de imediato? Há algumas questões de impacto que sabemos que o consumidor vai precisar de um tempo para assimilar, para entender, o que não adianta medir de imediato. Mas há alguns pontos que já podem ser avaliados de forma mais rápida, por exemplo, sobre a implementação das novas regras.
PANORAMA – Já foram definidos os indicadores no caso de rotulagem nutricional?
THALITA – Ainda não foram definidos indicadores. A GGALI está trabalhando nisso e houve algumas indicações no próprio relatório de análise das contribuições da consulta pública, como a adequação do perfil nutricional, se haverá aumento do uso de edulcorantes em substituição aos açúcares e sobre a declaração em bebidas alcóolicas.
Mas, o principal é se o consumidor entende a informação. E mais ainda, se isso terá algum efeito nas escolhas alimentares desse consumidor. Isso vai precisar ser monitorado mais para frente. Documentos de referência mostram que é preciso monitorar esse tipo de impacto de três a cinco anos depois que a norma entrou em vigor.