Em entrevista exclusiva ao Panorama ABIAD, o sócio diretor da Prospectiva, especialista em cenários políticos e econômicos, formulação e implementação de políticas públicas, Ricardo Sennes, traz visões e perspectivas político-econômicas do Brasil nos próximos anos para a indústria de alimentos.
ABIAD: Pensando especificamente na indústria de alimentos para fins especiais, quais os principais desafios para 2023?
Ricardo Sennes: Primeiro, em perspectiva geral, e olhando para as projeções econômicas do país, temos indicativos de baixo crescimento para 2023 e 2024. Soma-se a isso a questão da inflação e a impossibilidade de afirmar se ela será resolvida de maneira mais rápida ou não.
Sabemos que há uma artificialidade na inflação atual, causada pelo alto volume de intervenções ocorridas em 2022. É uma discussão que deve levar um semestre para acabar: se o atual índice de inflação de 6% é real ou está ainda sob efeitos dessas medidas.
Essa discussão é importante porque, em virtude de termos a maior taxa de juros reais do mundo, com exceção das economias que estão em guerra, a economia brasileira está condenada a crescer pouco.
Do lado político, temos uma variável pesada e que vai influenciar bastante, que é a questão da nova proposta de política fiscal que altera a regra do teto de gastos. Enquanto o governo não apresentar essa proposta, a tendência é que os atores econômicos adotem uma conduta conservadora.
Tanto o cenário econômico quanto o político geram ruídos e contribuem para uma economia andando relativamente devagar. Para o setor específico de alimentos, acredito que todas essas variáveis impactam negativamente, pois um crescimento baixo tende a reduzir a capacidade de consumo principalmente das classes sociais de média e baixa renda. A primeira reação é a substituição de marcas mais premium por marcas mais populares, a segunda é a redução do consumo.
Por outro lado, recentemente soltou-se uma prévia da inflação de fevereiro e a boa notícia é que houve uma redução da pressão inflacionária no núcleo de alimentos. Antes, os grupos de energia e alimentos eram os mais afetados. Com a redução apresentada em alimentos, o setor pode voltar a ter um equilíbrio nos seus preços relativos.
ABIAD: As políticas sanitárias e de saúde são pontos recorrentemente mencionados no debate público. O protagonismo destas pautas dado pelo novo governo exerceria algum tipo de influência no modelo de atuação de agências reguladoras como a Anvisa?
Ricardo Sennes: O tema da saúde chega mais forte e de maneira prioritária esse ano. Não era um eixo importante do governo anterior e, talvez por contraste e interesse político, o atual governo ofereça destaque às questões de saúde e políticas públicas.
Há três grandes frentes desse tema. Primeiro, as ações de prevenção em massa no campo da saúde, com ações intensas de comunicação e propaganda voltadas ao assunto, com destaque para campanhas de vacinação. Em segundo, o reforço do atendimento básico e um tipo de interação que acontece “na ponta”, com amplo leque de ações, abarcando desde nutrição, alimentação, saúde da mulher e da gestante, primeira infância e aí por diante. A terceira linha é um debate forte sobre saúde e hábitos alimentares, que abrange o álcool, o tabaco e os alimentos que alguns chamam por “ultraprocessados”. Acredito que essa terceira linha ganhe bastante força na agenda no médio -prazo, com possíveis implicações para a regulamentação dos setores responsáveis por alimentos e produtos que impactam na saúde de maneira geral.
ABIAD: A alimentação é outro tema de peso neste momento. Como os projetos e programas voltados a esse fim tendem a ser tratados em 2023 e quais são as contribuições dadas pelo setor produtor de alimentos nesse âmbito?
Ricardo Sennes:
O setor privado sempre tem espaço e boas ideias para colaborar. A troca de informações entre agentes públicos, formuladores de políticas, implementadores, especialistas, organizações internacionais e o setor produtivo é importante. Há espaço para colaboração no sentido de identificar problemas e desenhar possíveis soluções. Entendo que o setor privado deve participar de maneira consistente no debate dessas questões.
O governo atual e seus canais de comunicação tendem a ser mais abertos à interlocução com o setor privado e produtivo. Além do mais, existem canais que são mais amplos que apenas as autoridades públicas diretamente envolvendo, por exemplo, influenciadores e ONGs Não é necessário focar em falar estritamente com o formulador ou tomador da decisão dentro dos governos. Esse é um processo que envolve vários atores, dentro e fora do governo. No Brasil isso ocorre de maneira cada vez mais sofisticada.
ABIAD: Já é possível fazer uma leitura de qual será a postura de deputados e senadores em relação ao novo governo?
Ricardo Sennes: O mandato do novo legislativo começou em fevereiro, portanto é bem recente. Esse mês foi usado para a eleição das mesas e as composições das comissões. Mesmo antes da posse do atual presidente, já houve alguma interlocução entre o Lula e a Câmara do Deputados. Neste ano o debate de conteúdos ainda não começou. O que podemos ver é que o nível de coordenação do poder executivo com o legislativo é bastante alto. Também, há um aparente alinhamento nas declarações e temas que são prioritários para o novo governo, inclusive sobre o tema da reforma tributária.
ABIAD: O Brasil é o terceiro maior produtor de alimentos do planeta, de acordo com dados da OMS (2021), e espera-se que o país avance em inovação para poder superar seus obstáculos burocráticos, tributários etc. Pensando no setor industrial de alimentos, como é possível estimular um bom desenvolvimento desse setor?
Ricardo Sennes: Isso toca num assunto ainda pouco tratado no Brasil. Temos uma base agropecuária gigantesca e com potencial de crescer ainda por vários anos. Afinal, é um setor que cresce há pelo menos duas ou três décadas ininterruptamente. Somos grandes produtores agropecuários, mas há também espaço para agregar valor na indústria de alimentos em suas mais diversas categorias. Temos, ainda, uma indústria bastante voltada para o mercado doméstico, mas que pode ter condições para ser potencializada. O Brasil tem espaço para ser player internacional na indústria de alimentos. Os desafios estão relacionados ao processo produtivo, que deve receber condições para ganhar em competitividade, mas também na logística, que é diferente da logística das commodities, que são exportadas praticamente in natura. Outro ponto é a convergência com as regulações internacionais. Isso vale para alimentos nichados e alimentos de consumo em massa.
Tudo isso ainda tem espaço para avançar. Apesar do atual governo oferecer baixa prioridade a esse tema, não há como descartar a hipótese de se gerar uma agenda com esse tipo de apelo.
ABIAD: Falando sobre cenário econômico, há alguma novidade ou destaque relevante a ser comentado e que impacte a indústria de alimentos?
Ricardo Sennes: A questão da reforma tributária, que está sendo prometida para o primeiro semestre deste ano, é a dos impostos indiretos, que incidem sobre consumo de bens e serviços. Depois, no segundo semestre, irão trabalhar os impostos diretos, sobre lucros, dividendos e similares. Nesse primeiro semestre, no que se refere à reforma tributária dos impostos indiretos, ocorrerá um grande debate sobre como taxar ou não o setor de alimentos.
Existem duas propostas. Uma é ter isenção ou taxa muito baixa do futuro IVA (Imposto Sobre Valor Agregado) para toda a cadeia de alimentos, principalmente o que é vinculado à cesta básica. Outra corrente defende que se tribute tudo igualmente. A exceção seria aqueles produtos com externalidade negativa, em que o consumo implica em custos para outros, como tabaco, álcool, e outros produtos que possam entrar nessa tarifa excepcionalmente alta. Esses pagariam uma alíquota maior.
No entanto, existe o seguinte debate: mesmo considerando essa introdução do IVA e algum imposto seletivo para aqueles produtos com externalidade negativa, como tratar a área de alimentos? Uma isenção mais ampla, uma isenção mais estrita à cesta básica de alimentos, ou tratar tudo igualmente e só compensar as camadas mais pobres via outros programas, como o Bolsa Família, ticket alimentos e similares? Nessa última opção a cadeia seria tratada de maneira igual aos outros setores, porém combinado com políticas para os mais pobres acessarem o produto via programa de transferência de renda. É interessante colocar no radar que a reforma tributária pode afetar diferentemente os vários segmentos da indústria de alimentos.