Entrevista com Vinícius Pedote, diretor de Assuntos Científicos e Regulatórios LATAM da Kerry - Abiad

Entrevista com Vinícius Pedote, diretor de Assuntos Científicos e Regulatórios LATAM da Kerry

29 de julho de 2025

1. Há uma tendência de convergência regulatória entre diferentes países ou blocos econômicos como Estados Unidos, União Europeia, Ásia e América Latina?

Todos os países possuem mecanismos de atualização da legislação, o que varia conforme sua estrutura. Enquanto muitos na América Latina contam com agências regulatórias, como a Anvisa no Brasil que existe desde o final dos anos 1990, outros se apoiam na estrutura mais tradicional do poder executivo, como Ministério da Saúde e da Agricultura.

Uma parte importante desses mecanismos de atualização é a adoção de referências. Mesmo quando não está explícita na legislação local, referências internacionais sempre fazem parte do contexto de elaboração de uma nova regulamentação. Por esse motivo, o conhecimento da legislação internacional é fundamental para profissionais da área regulatória, principalmente para aqueles que atuam na área de advocacy. Além disso, é uma maneira de entender as tendências e desafios globais, e antecipar potenciais temas que podem influenciar a legislação local ou mesmo impactar as operações da indústria.

No Brasil, por exemplo, a Anvisa tende a confiar nos critérios da EFSA, a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos, e possui canal direto de comunicação com a agência. Entretanto, a referência principal ainda é o Codex Alimentarius, como deveria ser. E falando de Anvisa, sempre reforço que se trata de uma agência madura e autônoma – referências internacionais servem de base para o debate, mas o processo regulatório estabelecido garante decisões independentes.

A FDA, Food and Drug Administration dos Estados Unidos, não pode ser deixada de fora nesse assunto. Com orçamento anual superior a 7 bilhões de dólares (mais de 30 vezes o valor estimado para a Anvisa) e mais de 18.000 funcionários, é a maior agência do mundo na área de alimentos. Muitos países, como Peru e México, citam a FDA como referência oficial em caso de ausência de normas locais especificas.

Se fizermos um ranking de “influência regulatória”, eu diria que o Codex Alimentarius deveria vir em primeiro lugar. Afinal, são quase 200 países signatários que, em teoria, deveriam adotar os padrões, guias e códigos desenvolvidos em conjunto. São documentos amplamente discutidos ao longo de anos, com decisões consensuais e baseadas na ciência e com a colaboração de diversos setores da sociedade.

Em segundo lugar, sem dúvida vem a Europa, principalmente pelas características da EFSA, que possui um foco puramente científico e tem atuação independente e imparcial.

A interação entre agências pode ser constatada também no desenvolvimento da legislação de rotulagem nutricional frontal. No Brasil, foram 7 anos de debate, seguindo um processo bastante sólido liderado pela Anvisa, incluindo um excelente caso de AIR (Análise de Impacto Regulatório). Pouco tempo após sua publicação, a agência reguladora no Canadá, a Health Canada, publicou modelo gráfico muito parecido entre elas, e distinto de todos os demais modelos presentes na América Latina e nos Estados Unidos (este último ainda em discussão), demostrando que houve alguma interação e colaboração em algum momento.

A OMS e a OPAS – Organização Panamericana da Saúde para as Américas, possuem um papel crítico nesse cenário. Publicam manuais e recomendações como, exemplificando, para o desenvolvimento de política de impostos para bebidas açucaradas, e para implementação de rotulagem nutricional frontal. O México é um bom exemplo de país que seguiu as recomendações e implementou ambas as políticas, com grande impacto para a indústria de alimentos e bebidas local.

Concluindo, vivemos em um mundo globalizado e na área regulatória e de políticas públicas voltadas à saúde a globalização se manifesta através de preocupações comuns entre países e da influência de certos stakeholders sobre a elaboração de normas locais. A vantagem de uma convergência regulatória está na harmonização de legislação entre os países, o que beneficia empresas e consumidores, mas que ainda não se concretiza de maneira consistente.

2.  Quais são as principais tendências em regulamentação internacional de alimentos atualmente?

Entre os temas mais relevantes estão os ultraprocessados e a rotulagem nutricional, principalmente a rotulagem nutricional frontal, que já foi implementada no Brasil. Há também uma preocupação com segurança de alimentos, incluindo reciclagem de embalagens plásticas, e a questão dos microplásticos, um tema presente em todas as regiões e continentes.

A Organização Mundial da Saúde, por exemplo, tem publicações recentes importantes para os seus signatários. Em abril deste ano, houve uma reunião na qual resultaram 2 documentos: um para redução de sódio e outro sobre dietas saudáveis.  Não é novidade o tema de redução de sódio, mas o órgão está emitindo uma edição incluindo novos limites de sódio e detalhando valores específicos para categorias e subcategorias de alimentos. 

A publicação sobre dietas saudáveis será um tema muito discutido até o fim do ano, sendo que a primeira ação é a definição de alimento ultraprocessado. A partir dessa definição, devemos esperar diversos desdobramentos, como debates sobre aplicação de impostos e restrições comerciais aos alimentos que se enquadrarem na nova definição.

Ainda sobre ultraprocessados, diversos países da Europa estão reticentes em adotar o conceito nos guias alimentares e em políticas públicas, principalmente pela falta de embasamento científico e falta de uma definição harmonizada. Ciente do fato, a OMS se propôs a trabalhar nessa definição ainda em 2025 e, em seguida, nas recomendações de consumo. Como disse anteriormente, quando houver uma definição mais aceitável de alimento ultraprocessado, estimo que diversos países começarão a adotar a nova definição na legislação, abrindo caminho para criação de impostos seletivos, restrições comerciais e exigências de rotulagem.

É fundamental que profissionais da área regulatória acompanhem essas discussões internacionais para antecipar mudanças, e que as indústrias de alimentos trabalhem em conjunto com as associações para engajamento nos debates. A ABIAD, por exemplo, tem um papel crucial nesse debate, já tendo provado que tem uma participação ativa no processo regulatório, mesmo na elaboração de normas horizontais (aquelas que impactam todas as categorias de alimentos, como rotulagem nutricional).

3. Quais mudanças regulatórias internacionais você vislumbra para os próximos anos? E no Brasil?

A primeira é a discussão sobre ultraprocessados, que citei anteriormente, e que consequências isso terá na legislação brasileira. Acredito que a participação da Anvisa no assunto será limitada, enquanto o protagonismo estará nas mãos do Ministério da Saúde e, talvez, do Legislativo.

Outro ponto é a rotulagem nutricional frontal que, embora já esteja em vigor no Brasil, pode passar por atualizações e ter a lista de informações obrigatórias ampliada, como a inclusão de frase sobre a presença de edulcorantes.

A questão dos microplásticos tende a ganhar mais relevância nos próximos anos. Embora existam diversos estudos sobre sua presença no ambiente e até mesmo em alimentos e bebidas, seus efeitos no organismo humano ainda são inconclusivos. À medida que a compreensão científica sobre o assunto evolui, podemos esperar medidas de responsabilização de fabricantes e outros agentes da cadeia, incluindo a preocupação com o descarte de embalagens após o consumo, apesar que a indústria de alimentos está longe de ser a principal fontes de microplásticos no ambiente.

Finalmente, outro tema relevante é o desenvolvimento de novos estudos voltados à segurança de alimentos, uma prioridade constante da Anvisa. Entre os temas discutidos, podemos esperar aperfeiçoamento nos procedimentos para aprovação de novos ingredientes. A Europa, por exemplo, revisou esse procedimento este ano, o que pode inspirar a Anvisa a seguir o mesmo caminho. No caso da EFSA, o que inspirou a agência em atualizar o procedimento foi o alto índice de rejeição de pedidos de aprovação de novos ingredientes – em nenhum momento discutiu-se a flexibilização dos critérios, mas sim o esclarecimento para cumprimento das exigências para a redução do retrabalho e de rejeições sumárias.

4.  Como o Brasil é visto internacionalmente em relação a busca de uma convergência regulatória?  

O Brasil é um país respeitado internacionalmente no campo regulatório e tem voz ativa, participando frequentemente das sessões e grupos de trabalho do Codex Alimentarius, sempre representado por profissionais experientes, principalmente da Anvisa e eventualmente do setor privado. Na última reunião sobre aditivos (CCFA), por exemplo, a Anvisa liderou a discussão sobre o status do corante Eritrosina, que havia sido proibido pela FDA pouco tempo antes da reunião.

 Nos corredores do mundo regulatório, discute-se quem herdará o protagonismo após os Estados Unidos anunciarem sua saída da OMS. Frequentemente, ouve-se o nome do Brasil. No entanto, pessoalmente, não acredito que que essa liderança vá se concretizar, considerando a limitação de recursos para ampliação de profissionais na Anvisa, Inmetro, Ministério da Saúde e no Itamaraty, que possam participar ativamente de todas as reuniões e eventos relevantes. Ainda assim, o Brasil mantém sua relevância e boa posição no cenário regulatório internacional.

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