1. Uelinton, para começar, o que torna um alimento industrializado seguro para o consumo?
Costumo dizer que a produção de alimentos acontece em uma grande engrenagem que envolve toda a cadeia de produção, começando no campo, passando pela indústria e indo até o momento do consumo.
Um alimento seguro é aquele que foi produzido em todo o seu ciclo de forma segura, seguindo as boas práticas agrícolas lá no campo, passando pelas boas práticas durante o transporte, durante o processamento, aliado a Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle – APPCC (do inglês Hazard Analysis and Critical Control Points – HACCP) e pelas boas práticas no varejo e na manipulação na casa do consumidor.
O que torna os alimentos industrializados seguros é justamente a atuação da indústria em toda a cadeia de suprimentos e não apenas na etapa de processamento em si, que obviamente é muito importante, mas precisa estar bem engrenada com toda a cadeia.
As indústrias que têm como objetivo de negócio produzirem alimentos seguros possuem uma cultura de segurança de alimentos proativa, se antecipando aos problemas de segurança e levando ao consumidor um alimento com o menor risco possível de causar uma doença transmitida por alimento (DTA).
Claro que para produzir um alimento seguro, é necessário ter profissionais capacitados nas boas práticas, além de infraestrutura adequada e comprometimento da equipe, algo que é muito trabalhado hoje em dia nos programas de qualidade, particularmente nas indústrias que possuem certificação como a FSSC22000 (Food Safety System Certification), entre outras.
2. Por que alimentos que ainda podem ser consumidos após o prazo de validade, e que não perderam completamente seu teor nutricional devido ao acondicionamento adequado e outras características específicas, não podem ser comercializados?
A questão do prazo de validade dos alimentos é algo bastante polêmico. A validade dos alimentos é determinada principalmente pela segurança (inocuidade), composição (teor nutricional) e desempenho sensorial.
Existem alguns alimentos que continuam seguros mesmo após o prazo de validade, mas não podem ser comercializados por questões legais. No Brasil, a venda de alimentos vencidos é proibida pela Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990 que define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo.
Em seu artigo 7º, a lei estabelece que é crime vender, expor à venda, manter em depósito para vender ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em condições impróprias para o consumo. A venda de alimentos vencidos se enquadra nessa definição, sendo passível de punições que incluem multa e detenção.
3. Você poderia nos explicar como funciona a ciência por trás do controle de qualidade dos alimentos durante o processo de fabricação?
O controle de qualidade dos alimentos durante o processo de fabricação é algo bastante complexo que envolve controle de todos os processos dentro da indústria, desde o recebimento até a expedição. Este controle envolve inspeções visuais e documentais, análises físico-químicas e microbiológicas, controle dos parâmetros de processo que podem envolver controle de temperatura, pH, acidez, teor de sal, conservantes, entre muitos outros.
Na formulação de um novo alimento, a equipe de produção e do controle de qualidade estudam todos os ingredientes, suas interações e o que acontece durante o processamento para predizer o prazo de validade do produto.
Vale ressaltar que a indústria trabalha sempre com uma margem de segurança para garantir que todos os atributos de qualidade sejam garantidos até o último dia do prazo de validade. Por isso que seguindo as recomendações do fabricante, o alimento estará não somente inócuo até pelo menos o último dia do prazo de validade, mas também deverá ter garantido seu teor nutricional e sua qualidade sensorial.
4. Sabemos que a legislação no Brasil é bastante rigorosa. Há uma razão para isso, considerando que, em outros países, as normas são mais flexíveis, aplicando, por exemplo, o conceito de “best before”?
Bom, acho importante esclarecer que em alguns países existem dois prazos de validade: o best before (melhor antes) e o use by ou sell by (válido até). Ou seja, existe uma garantia que o alimento tem o seu melhor desempenho sensorial, teor nutricional e segurança até esta data do best before.
Passada esta data, o alimento continua seguro, mas não há essa garantia de frescor ou que todos os nutrientes estejam com seus níveis garantidos como no rótulo nutricional (isso é particularmente importante para algumas vitaminas, por exemplo, já que macronutrientes não serão alterados).
Daí o use by ou sell by traz justamente essa garantia de segurança até essa data. Isso pode evitar um desperdício enorme de alimentos que estariam perfeitamente bons para consumo, mas seriam jogados no lixo, como acontece aqui no Brasil. Pode haver um aspecto cultural envolvido, considerando que no Brasil é comum a preocupação com a questão de “tirar vantagem”, e nossa legislação busca impedir essa prática fraudulenta que poderia ser adotada por alguns se as leis fossem muito flexíveis.
No entanto, é imperativo revisar essas normas, pois o desperdício de alimentos não apenas compromete a segurança alimentar da população, mas também contribui para problemas ambientais, perdas econômicas e acaba sendo também um desafio ético.
5. Quais são as consequências para o consumidor devido ao desconhecimento sobre as orientações que ajudam a identificar alimentos aptos ou não para o consumo?
Creio que saber identificar se os alimentos estão aptos ou não para consumo seja algo bastante intuitivo, já que pelos nossos sentidos conseguimos evitar muitos problemas, incluindo de saúde e de desperdício.
Ao analisarmos um alimento como consumidores, vamos buscar perceber se aquele alimento apresenta as características sensoriais esperadas e se isso não for o caso, a gente tende a rejeitá-lo. É uma estratégia de sobrevivência já que um alimento em mal estado de conservação terá uma maior chance de nos causar algum problema de saúde.
Mas sabemos que a contaminação por patógenos ou toxinas, na maior parte das vezes não gera alterações perceptíveis nos alimentos, ficando realmente a cargo da indústria garantir a sua segurança para consumo e da parte do consumidor fazer o dever de casa de armazenar e manipular o alimento de forma segura.
Em inglês tem um ditado que é muito interessante quando falamos sobre alimentos que é o seguinte: if in dout, throw it out. Portanto, na dúvida sobre a qualidade de um alimento, é melhor não arriscar.
6. Por fim, como a ciência e a indústria podem atuar para desmistificar o tema da segurança dos alimentos e influenciar o aprimoramento da legislação brasileira referente à segurança dos alimentos?
A universidade, por meio de programas de extensão e divulgação científica tem feito bastante para desmistificar conceitos errôneos (fake news) que muitas vezes são divulgados nas redes sociais. Tenho visto bastante gente empenhada na criação de perfis voltados a divulgação de temas relativos à segurança dos alimentos e isso é muito bom.
A indústria deveria auxiliar mais as universidades por meio de parcerias, pois essa aproximação facilita a divulgação de conhecimentos técnicos apropriados e leva à população um entendimento sobre o processamento de alimentos, crucial para garantir a segurança dos alimentos e a segurança alimentar.
Temos observado uma crescente aversão ao processamento, especialmente devido à distorção do conceito dos ultraprocessados, levando muitos a acreditarem que o processamento é algo negativo. Na realidade, sabemos que o processamento de alimentos traz inúmeros benefícios, como a redução do desperdício, o aumento da segurança dos produtos e a maior disponibilidade dos alimentos, graças ao aumento da vida útil deles.
O aprimoramento da legislação será algo natural quando mais e mais pessoas começarem a perceber que é preciso reduzir o desperdício de alimentos, além de entenderem quais são os riscos e os benefícios de termos a criação de prazos de validade diferenciados por “best before” e “use by”, por exemplo.